domingo, 22 de julho de 2012

DO ESQUERDOPATA

A verdade é violenta


Violência & poder em Sampa 
“A violência é a base mais fraca possível para a construção de um governo. É a arma favorita do impotente”
Márcia Denser

“Qualquer um pode ser preso ou morto se estiver no lugar errado”, declarou a professora da USP e especialista em Sociologia Urbana, Vera da Silva Telles ao site Carta Maior desta semana, analisando o atual surto de violência e a ação policial nas periferias de São Paulo. Entre 17 e 28 de junho, segundo dados do Sistema de Informações Criminais, 127 pessoas foram assassinadas na capital. Durante o mês de junho, 39 cidades da Grande São Paulo registraram 166 mortos.

Na avaliação de Telles, a explosão de violência nas periferias de Sampa faz parte de “um embaralhamento dos critérios de ordem, no qual a ação dos agentes policiais gera um sentimento de imprevisibilidade nos moradores de tais áreas.” (apesar do jargão criptoacadêmico, é uma explicação muito simplista, confusa e rebuscada pro entendimento do leitor comum, vocês não acham?). Por outro lado, especula-se que o estopim para essa onda de “violência extralegal” seria um suposto confronto entre membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) em 28 de maio, na zona leste, com oficiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), do qual teria resultado cinco mortes.

Para muitos, a violência do Estado – sobretudo um Estado tucano há décadas – é o ingrediente central dos assassinatos em Sampa, refletindo práticas higienistas, sem contar o encarceramento que se maximizou em toda a região, na mesma medida em que, sintomaticamente, extinguiram-se os empregos sob o império dum Estado excludente e privatista. Mas as conexões entre violência, poder e autoridade estão sutilmente articuladas em reflexões exemplares por Slavoj Zizek, em seu último livro (1), uma vez que ele considera o estudo do antagonismo da ordem social uma tarefa maior do nosso tempo.

Segundo o filósofo esloveno, a única maneira de nos orientarmos na charada da violência é nos concentrarmos em sua natureza paralática (a “paralaxe zizekiana” é o efeito do aparente deslocamento do objeto observado devido à mudança na posição do observador. A exemplo daquela frase de Malcolm Lowry: “Quando se olha diretamente para o abismo, este devolve o olhar”). Resumindo: como “reagimos” à violência e nela interferimos, modificando-a.

Inicialmente, é preciso examinar os curtos-circuitos entre os diversos níveis, digamos, entre poder e violência social. Uma crise econômica que causa devastação é vivenciada como poder incontrolável e quase natural, mas deveria ser vivenciada como violência. O mesmo acontece com a autoridade e a violência: a forma elementar de crítica da ideologia é exatamente desmascarar a autoridade como violência.

Aqui o autor se refere a Hannah Arendt que elaborou (2) uma série de distinções entre “poder”, “vigor”, “força”, “violência” e “autoridade”. “Força” deve ser reservada para as “forças da natureza” ou a “força das circunstâncias”, indicando a energia liberada por movimentos físicos ou sociais. Nunca deve ser intercambiável com o “poder” no estudo da política: a força se refere a movimentos da natureza e outras circunstâncias humanamente incontroláveis, enquanto poder é função das relações humanas.

Nas relações sociais, o poder resulta da capacidade humana de agir em concerto para convencer ou coagir os outros, enquanto “vigor” é a capacidade individual de fazer isso. “Autoridade” é uma “fonte” específica de poder. Representa o poder investido em pessoas em virtude de seus cargos e autoridade quanto a conhecimentos relevantes. Existe autoridade pessoal na relação pais e filhos, professor e aluno, padres ou pastores e comunidade de fiéis. Sua marca é seu reconhecimento inquestionável, não é necessária nem coação nem persuasão para que os outros obedeçam. Portanto, a autoridade não brota simplesmente dos atributos do indivíduo, seu exercício depende da disposição por parte dos outros de atribuir respeito e legitimidade e não da capacidade pessoal (as tais “gestão” & “competência” eternamente invocadas como mantras neoliberais) de alguém de persuadir ou coagir.

Portanto, é fundamental distinguir poder de violência: o poder é psicológico, uma força moral à qual as pessoas obedecem naturalmente, enquanto a violência impõe a obediência por meio da coação física. Os que empregam a violência podem impor temporariamente sua vontade, mas seu comando é sempre tênue, porque quando a violência acaba ou diminui, há ainda menos incentivo para obedecer às autoridades. O controle da violência exige vigilância constante. Violência de menos é ineficaz; violência demais gera revolta. A violência pode destruir o poder antigo, mas não pode criar autoridade que legitima o poder novo.

Logo, a violência é a base mais fraca possível para a construção de um governo. É a arma favorita do impotente: os que não têm muito poder tentam controlar os outros usando a violência. Ela raramente cria poder. O terrorista que explode um prédio ou assassina um político dá ao governo a desculpa que ele deseja para reduzir as liberdades individuais e expandir sua esfera de influência. Quando um governo recorre à violência, é porque sente que seu poder está se esvaindo. Os governos que dominam pela violência são fracos e sem legitimidade.

A proposta do terrorismo político de esquerda na EU nos anos 70/80 (o Baader-Meinhof na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, a Action Directe na França, etc.) resultam duma época em que as massas estão totalmente imersas no torpor ideológico capitalista e a crítica da ideologia já não funciona mais, donde só o recurso ao real nu e cru da violência direta consegue despertá-las.

A “maioria silenciosa” pós-política de hoje não é estúpida, mas cínica e resignada. A limitação da pós-política é bem exemplificada não só pelo sucesso do populismo direitista, cujos expoentes europeus foram, apesar da impopularidade crescente, reeleitos “democraticamente”, a exemplo de Tony Blair (eleito também várias vezes a pessoa mais impopular do Reino Unido), Sarkozy, Berlusconi e outros.

Isto significa que o descontentamento geral não tem como encontrar uma expressão política eficaz. Há algo muito errado aqui: o problema não é que as pessoas “não sabem o que querem”, e sim que esta “resignação cínica” as impede de agir, de modo que o resultado é a estranha lacuna entre o que elas pensam e como agem, isto é, votam.

Portanto, a violência sistemática dos sucessivos, além de fracos e ilegítimos (ou deslegitimados/desmoralizados) governos tucanos em Sampa é o inevitável resultado catastrófico deste voto “cínico e resignado” da maioria silenciosa pós-política paulistana.

É isso aí. Uma pílula amarga de engolir, contudo, também segundo Zizek, “a verdade é violenta”.

(1)Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, Boitempo, 2012.

(2)In Hannah Arendt. Rio, Sobre a Violência, Civilização Brasileira, 2009.
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Alienação social faz dos EUA terreno fértil para chacinas

"O que mais chamou minha atenção no atirador que matou nesta segunda-feira pelo menos 12 pessoas num cinema do Colorado onde “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge” estava sendo exibido foram a máscara de gás, o colete à prova de balas, o capacete e as três armas que ele usou –incluindo um fuzil. ”


MICHAEL KEPP
Plano Brasil

Uma testemunha disse que ele “parecia preparado para ir à guerra.


Alguns podem dizer que o fato de o atirador parecer um soldado é um reflexo de todas as guerras que minha pátria vem travando, do Vietnã ao Iraque e ao Afeganistão, e de quão fortemente armados estão os seus cidadãos.

Mas há fatores menos óbvios que também fazem dos Estados Unidos um terreno fértil para chacinas.

Acho que a alienação social e a pobreza espiritual necessárias para cometer assassinatos em massa são um produto da cultura americana, mais que de qualquer outra.

É uma sociedade altamente competitiva e individualista, com pouco sentimento de comunidade. Cerca de 25% dos americanos vivem sós.

Não surpreende que as chacinas, incluindo a de ontem no Colorado, sejam quase sempre cometidas por homens brancos de classe média, o segmento da população mais pressionado a ter sucesso e que tem o menor senso de comunidade.

Acho que o Brasil é um terreno menos fértil para franco-atiradores devido ao senso maior de comunidade que existe aqui.

Os únicos crimes dessa natureza dos quais me recordo aqui foram o assassinato de três pessoas e ferimentos em quatro às mãos de um estudante de medicina em um cinema de São Paulo, em 1999, e a morte de 12 crianças e ferimentos em outras 11 numa escola no Rio em 2011, por um ex-aluno de 24 anos.

O atirador de São Paulo era um fanático da internet, solitário, perturbado e de alta classe média, o perfil do atirador americano típico.

O atirador do Rio tinha mais semelhanças com os dois estudantes que mataram 12 de seus colegas e um professor no colégio Columbine, de classe média, em 1999, também no Colorado.

O que esses massacres todos têm em comum: aconteceram em lugares onde as pessoas estavam reunidas. Normalmente nos sentimos mais vulneráveis quando estamos sozinhos.

Mas, em lugares como cinemas, estamos mais vulneráveis juntos. É isso o que é tão assustador nesses crimes todos. É por isso que os americanos podem pensar duas vezes na próxima vez em que quiserem assistir, não apenas a um filme de Batman, mas a qualquer filme.


MICHAEL KEPP, jornalista americano radicado há 29 anos no Brasil, é autor do livro “Tropeços nos Trópicos – crônicas de um gringo brasileiro”.


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