quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A vida para os Cerveiras parou em 13 de janeiro de 1974:

“Às 18 horas do dia 5 de dezembro de 1973, meu pai Joaquim Pires Cerveira (...) se dirigiu a um encontro com seu companheiro de Organização (...) João Batista de Rita Pereda.
“Atropelado e seqüestrado com Pereda no centro de Buenos Aires pela Operação Condor, foram entregues à ditadura brasileira.
“Foi assassinado em 13 de janeiro de 1974 no DOI-Codi da Barão de Mesquita (RJ), tornando-se um desaparecido político.
“Dali para frente, a vida se resumiu na busca da verdade e dos seus restos mortais.”

Segundo ela o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Deops/SP, comandou pessoalmente o seqüestro, com a colaboração de agentes da Polícia Federal e do Exército argentinos.
Enviado a São Paulo, Cerveira ficou à disposição do DOI-Codi, então chefiado por Carlos Alberto Brilhante Ustra.
E foi Ustra em pessoa que o entregou ao DOI-Codi/RJ, onde chegou numa ambulância, às 23h do dia 12. Durante a madrugada executaram-no; depois, deram sumiço nos seus restos mortais.
Conheci Cerveira em maio/1970, no DOI-Codi/RJ. Quarentão, bondoso, esforçava-se por elevar o moral dos colegas de cela, cantando músicas de sua autoria.
Uma delas ficou para sempre na minha lembrança. Começava assim:
“É bonito o anoitecer na praia,/ é bonito o anoitecer no mar./ Eu fui no mar, à tardinha,/ levar meu presente pra nossa rainha./ Ê, ê, é a rainha do mar,/ ah, ah, nossa mãe Iemanjá”.
Por razões de segurança, não conversávamos sobre nossas respectivas militâncias. Soube depois que ele era gaúcho e vinha das hostes brizolistas.
Mal os golpistas de 1964 usurparam o poder, transferiram-no à reserva: ele foi um dos punidos pelo Ato Institucional nº 1.
Preso em outubro/1965, acabou sendo inocentado da acusação de subversão em maio/1967.
Nova detenção em 1970, quando fomos colegas de infortúnio. Sua esposa e filho também sofreram torturas.
Minhas recordações, claro, são nebulosas, tanto tempo depois. Mas, ficou-me a imagem de um homem de tipo caseiro, cuja aparência prosaica e inofensiva contrastava com a dos ex-militares da minha própria organização, a VPR; estes tinham ar decidido e pareciam sempre prontos para a ação.
Minha avaliação, face ao que fiquei sabendo depois, não estava longe da realidade. Cerveira, bom pai de família, poderia perfeitamente ter levado uma existência tranqüila. Era a causa, a noção de dever, que o forçava a enfrentar perigos e viver fugido.
Um dos 40 presos libertados quando do seqüestro do embaixador alemão, viajou em junho/1970 para a Argélia.
No Chile, participou em 1972 do julgamento de uma dirigente da VPR, acusada de pusilaminidade diante da repressão. Convenceu os demais julgadores que, mesmo sendo ela culpada, revolucionários não deveriam matar revolucionários. Salvou-lhe a vida.
Sem a mínima ambição pessoal, com enorme idealismo e força moral, Cerveira foi um daqueles quadros que fizeram muita falta na redemocratização do País.
Então, sou inteiramente solidário ao sofrimento e à revolta de Neusah Cerveira, que acaba de divulgar a seguinte mensagem a Lula:
CARTA ABERTA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA DO BRASIL
Presidente Lula,
"Você recebeu tão carinhosamente a Ingrid Betancourt, condenou veementemente os seqüestros."Durante seu seqüestro, como ela mesmo disse, você foi incansável na luta por sua libertação."Por que não faz o mesmo por nós, seus compatriotas?"
Por que não usa a mesma veemência para obrigar os terroristas da ditadura a indicar o que fizeram os corpos dos nossos parentes seqüestrados pela Operação Condor, barbaramente assassinados e desaparecidos?"
Lembro a Sua Excelência que foi um compromisso seu de campanha resolver definitivamente essa questão."
Eu cobro esse compromisso! É a hora, presidente! Até quando levará o nosso sofrimento? Basta uma palavra sua para resolver essa questão."
Como deseja entrar para a História do Brasil: como o presidente que traiu seus compromissos com seus companheiros mortos ou como um estadista que não ficou de joelhos perante a escória do Exército brasileiro?"
E então, presidente? Não somos Ingrid. Alguns de nós estão morrendo de velhice, de seqüelas de tortura e de sofrimento inimaginável por uma espera que não acaba."
Lembro a Sua Excelência que sua vitória, em grande parte, está pavimentada sobre o cimento dos corpos e da resistência de nossos parentes e da nossa dor, mas, sempre, do nosso apoio."
O que falta, presidente? Você é o chefe supremo das Forças Armadas do Brasil, dê a ordem que o transformará verdadeiramente num estadista! Ou entre para a História como Pilatos."
Espero uma resposta, sou brasileira, tenho mais direito ao seu apoio do que a Ingrid."
(Neusah Cerveira)

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