segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Voto de Minerva e voto de estadista

Como se sabe, o processo de extradição do ex-militante Cesare Battisti, no Supremo Tribunal Federal, foi suspenso na última 5ª. feira, com o placar de quatro votos a favor e quatro contra. A defesa argumentou que, diante do empate, dever-se-ia proclamar que a decisão era favorável ao extraditando, por força da máxima universal do in dubio pro reo. O tribunal, todavia, entendeu que o Presidente da Corte deveria votar, transferindo para ele o enorme ônus do desempate.
A imprensa tem divulgado que o Ministro Gilmar Mendes não tem simpatia pela causa do ex- militante de esquerda, acusado de participação em quatro homicídios. Não é o caso de repetir aqui os argumentos de que Battisti, depois de ter sido inocentado, foi julgado uma segunda vez, à revelia, sem advogado, mediante delação premiada feita pelos próprios acusados dos homicídios, em meio a inúmeras denúncias de tortura.
Julgamento coletivo, com mais de trinta condenações políticas. Neste momento, o ponto relevante é que se tem especulado que o Presidente do STF já teria deixado transparecer sua opinião, e que, por conseqüência, a sorte de Battisti já estaria selada.
Felizmente, a vida jurídica não se move assim. Simpatias políticas à parte, o Presidente é um juiz técnico, que tem preocupações com o papel institucional da Corte e com o sistema interno e internacional de direitos humanos. Tudo isso sinaliza no sentido de uma decisão contrária à extradição.
Há, em primeiro lugar, uma razão técnica pela qual a extradição não pode ser concedida: a pretensão de execução da pena contra Battisti está prescrita. A decisão final condenatória é de 13.12.1988, data em que lhe foi aplicada a pena máxima de prisão perpétua. Em 13.12.2008, passados 20 anos, consumou-se a prescrição. O Ministro Marco Aurélio demonstrou a ocorrência da prescrição de maneira irrefutável.
Ainda nesta 2ª. feira, a defesa apresentará memorial com novo argumento de reforço à tese de prescrição. Como se trata de um elemento puramente objetivo, não há escolhas políticas envolvidas no particular e por isso é possível supor que outros Ministros venham a modificar seus votos. Mas não é este aspecto técnico que se deseja explorar no presente artigo.
Ao lado do intransponível obstáculo jurídico referido acima, há uma razão institucional pela qual se pode esperar que o Presidente do STF não autorize a extradição. Admita-se, para fins de argumentar, que sua posição pessoal seja desfavorável ao extraditando. Contudo, uma coisa é o voto individual de um Ministro. Outra, é o peso institucional da decisão do Presidente de uma Corte que vai desempatar o julgamento para enviar um homem para a prisão perpétua (a Itália jamais assumiu o compromisso de comutar a pena para 30 anos), após o cancelamento de refúgio concedido pela autoridade competente.
O STF não tem nenhum precedente nessa linha: desempate para mandar extraditar. Aliás, desde a sua origem mitológica, voto de Minerva é a favor da defesa: Atenas (chamada de Minerva pelos romanos) desempatou em favor de Orestes, acusado de vingar a morte do pai, Agamenon, que comandara o exército grego na guerra de Tróia. O Presidente Gilmar Mendes lidera no STF uma corrente garantista em matéria penal. Seria apenas razoável supor que vá continuar a fazê-lo.
Por fim, há uma razão humanista pela qual se deve acreditar que o voto do Presidente desempatará em favor da defesa. A decisão de extraditar alguém que recebeu refúgio político é muito grave, dramática mesmo, para o sistema doméstico e internacional de direitos humanos. Não importa o juízo político que cada um faça sobre o acerto ou desacerto da decisão do Ministro Tarso Genro (pessoalmente, acho que ele estava certíssimo).
Animados pela perspectiva de uma decisão pró-extradição, Irã, Cuba e Colômbia já se movimentaram para postular a extradição de perseguidos seus que receberam refúgio no Brasil, como divulgou o Conare. O Alto Comissariado da ONU já manifestou formalmente o receio de que o cancelamento do refúgio e a autorização da extradição de Battisti se torne um precedente desastroso para a proteção dos direitos humanos.
Por toda parte, o exemplo será invocado por tiranos e violadores dos direitos humanos. O STF, que conquistou o respeito e a admiração da comunidade internacional pelo seu papel na reconstrução democrática do Brasil e na proteção dos direitos fundamentais, vai carregar o estigma de algoz dos perseguidos políticos pelo mundo afora.
O Presidente Gilmar Mendes saberá evitar que a Corte receba esse carimbo negativo. Juízes que são estadistas sabem sublimar o próprio sentimento e enxergar além do caso concreto. Têm a visão da história. Não existe direito constitucional do amigo e do inimigo. Só o direito constitucional das competências adequadas e dos direitos fundamentais.
O Professor Gilmar Mendes sabe disso muito bem. Presidente de um tribunal dividido e corroído pela dúvida, difícil supor que, passados trinta anos dos fatos relevantes, desempatará em favor da pena perpétua e da provável morte na prisão de um homem que viveu outra época.

Luís Roberto Barroso é professor de direito constitucional e advogado de Cesare Battisti perante o Supremo Tribunal Federal.

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