terça-feira, 26 de outubro de 2010

'Cooperação sul-sul deve preencher vazios'

Em entrevista, acadêmica argentina vê laços no hemisfério sul como opção à colaboração norte-sul, em baixa sobretudo na América Latina

Divulgação
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da PrimaPagina

A cooperação entre os países do hemisfério sul tornou-se necessária para preencher vazios deixados pela colaboração norte-sul, sobretudo na América Latina, que registrou diminuição da ajuda oficial ao desenvolvimento dada pelos países do norte. A afirmação é da professora argentina Gladys Lechini, coordenadora do Programa de Doutorado em Relações Internacionais da Universidade de Rosário (UNR).

Ela liderou um grupo de pesquisadores e intelectuais de seu país na visita à sede do CIP-CI (Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo), órgão do PNUD em parceria com o governo brasileiro, em Brasília. Na ocasião (foto), a delegação participou de um debate sobre como consolidar o diálogo sul-sul em cooperação para o desenvolvimento.

Em entrevista à PrimaPagina, ela destaca não apenas a importância desse tipo de cooperação como uma opção de diálogo diferente, mais produtivo e enriquecedor - na medida em que não é percebido como um incentivador de dependências internacionais -, mas faz um alerta: ainda é muito cedo para dimensioná-la ou avaliá-la em toda sua extensão, até porque há o risco de apresentar os mesmos vícios da cooperação norte-sul.

A cooperação entre os países do hemisfério sul tem crescido nos últimos anos. Em que pontos ela se diferencia e em que pontos se iguala à cooperação tradicional, norte-sul?

Em primeiro lugar, deveria ser definida a qual dimensão da cooperação sul-sul estamos nos referindo. A cooperação política? A cooperação para o desenvolvimento? A cooperação em ciência e tecnologia? Isso só para mencionar as vertentes mais relevantes.

Em segundo lugar, acreditamos que a cooperação sul-sul surgiu para preencher alguns vazios deixados pela cooperação norte-sul, como herdeira de lições deixadas por ela. No entanto, segundo atores, situações e dimensões dessa cooperação, há a possibilidade de que a sul-sul possa ter os mesmos vícios e virtudes da norte-sul.

Em terceiro lugar, cabe esclarecer que a cooperação sul-sul ainda é embrionária. Falta ser desenvolvida e, todavia, não existem dados suficientes para podermos dimensioná-la ou avaliá-la em toda a sua extensão.

A cooperação sul-sul deve substituir ou complementar a norte-sul?

Está claro que ambas devem ser complementares, evitando o solapamento que muitas vezes provoca efeitos negativos.

No caso particular da América Latina, a cooperação norte-sul, e, em especial, a ajuda oficial ao desenvolvimento, diminuíram substancialmente nos últimos tempos, razão pela qual a sul-sul se tornou mais relevante e necessária, quase no sentido de uma autoajuda.

A cooperação sul-sul já mudou de algum modo a cooperação norte-sul?

É muito difícil falar, em geral, quando não se está clara a dimensão a que estamos nos referindo. Se a entendemos como ajuda ao desenvolvimento, acreditaria que não.

A partir da perspectiva política, a cooperação sul-sul apresenta um diálogo diferente, mais produtivo e enriquecedor na medida em que não é percebido como um propulsor da dependência estrutural, e sim angariando esforços para modificar situações de desvantagem.

Faz sentido dizer que um país em desenvolvimento conhece melhor os problemas e as possíveis soluções para outro país na mesma situação? O Brasil e a Argentina conhecem Honduras melhor do que a Espanha, por exemplo?

Um país do sul conhece melhor a própria realidade e pode dar soluções a países que vivem situações e problemas similares. Brasil e Argentina provavelmente já passaram por um processo de aprendizagem e adaptação que podem transmitir mais eficientemente a outros países da região menos desenvolvidos.

Em alguns tipos de cooperação sul-sul, o país doador de recursos ou de cooperação técnica não impõe condições (prestação de contas, respeito a direitos humanos). A senhora considera isso positivo ou negativo?

Impor condições tem aspectos positivos e negativos. Antes de tudo, deve se levar em conta que é fundamental por parte do receptor assumir a responsabilidade do bom uso dos recursos, e, nesse sentido, por exemplo, a prestação de contas contribui ao dar mais transparência aos atos. No entanto, muitas vezes os doadores impõem condições, mostrando que a ajuda não é desinteressada e que está vinculada a ações e a respostas particulares, como contrapartida. E caso essas condições não sejam viáveis, a cooperação não se realiza.

O sul, claro, não é homogêneo. Os países de renda média têm colaborado para o desenvolvimento dos países mais pobres?

O sul não é homogêneo, é composto por países periféricos com diferentes graus de desenvolvimento. Mas essa diversidade fica ainda mais complexa na hora de definir o que se entende como desenvolvimento. Para muitos, o desenvolvimento é redução da pobreza, e uma boa forma de se medir a pobreza é o indicador de renda per capita.

A classificação dos países em desenvolvimento por sua renda per capita é produto da necessidade do Banco Mundial de classificar os países segundo algum critério, para poder estabelecer os termos financeiros dos contratos de empréstimo às nações em desenvolvimento.

Segundo o ranking do Banco Mundial, apresentam baixa renda os países que têm renda per capita inferior a US$ 746, e são nações de média renda os que registram renda per capita de menos de US$ 9.205. Dessa forma, os países de baixa renda têm condições financeiras mais brandas que os de média renda, que só recebem empréstimos mais próximos às condições de mercado.

Também se supõe que os países de baixa renda carecem de capacidade para lidar sozinhos com a resolução de seus problemas econômicos, políticos e sociais, enquanto os países de renda mais elevada dispõem dos recursos para impulsionar seu desenvolvimento.

Particularmente, não estou muito de acordo com as classificações que dividem o mundo em desenvolvimento por seu nível de renda, pois nesse contexto o desenvolvimento parece ser medido com um critério estritamente econômico, sem levar em consideração outros aspectos como desenvolvimento social ou político, a distribuição de renda, o desenvolvimento humano e sustentável.

Também convém acrescentar que nem todos os países considerados de média renda pertencem ou pertenceram ao chamado sul, e que poucos deles desenvolveram ações de cooperação sul-sul, se percebendo, muitas vezes, como receptores de cooperação do norte.

Em geral, a cooperação sul-sul tem se dado entre governos nacionais. A senhora vê espaço para parceria entre governos regionais? Como isso poderia ser feito?

Se pensamos os governos regionais como atores subnacionais, a cooperação sul-sul também é possível, respondendo aos modelos mais gerais e aproveitando os benefícios de uma maior singularidade. Essa cooperação trans subnacional pode, inclusive, ocorrer entre atores não governamentais, desenvolvendo práticas positivas e inovadoras.

O Mercosul deveria ter uma política de cooperação única?

Não é necessário desenvolver uma política de cooperação única, tendo em conta as particularidades dos países e da ainda embrionária estrutura comum. Não obstante, seria aconselhável que as nações do Mercosul pudessem coordenar sua cooperação, tanto com relação às políticas, como nas variadas dimensões que ela inclui. Seria até muito interessante que se trabalhasse em torno da implementação de um modelo de desenvolvimento comum, do qual derivariam as posteriores ações de cooperação.

Como a senhora avalia que Argentina e Brasil podem trabalhar juntos na cooperação sul-sul?

Argentina e Brasil podem trabalhar de forma conjunta. Não obstante isso, no nível da dimensão política ainda há muito caminho a ser percorrido, frente à ausência de políticas de estado sobre a questão.

O desenho de estratégias de cooperação nos âmbitos multilaterais, por exemplo, se viu interrompido quando se apresentaram interesses contrapostos, e a vontade e os interesses individuais ficaram acima do “bem comum”.

Se nos referimos à cooperação científico-tecnológica, por exemplo, com países da América Latina ou da África, acredito que nossos países estão em condições de implementar estratégias conjuntas que reúnam esforços e criem sinergia.

A experiência de ambos também poderia ser usada nos projetos dos Fundos para a Convergência Estrutural do Mercosul, para replicar em outros espaços.

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