quinta-feira, 16 de junho de 2011

PARA LINGUISTA DA UNICAMP, NOÇÃO DE ERRO NÃO FAZ SENTIDO: “O QUE EXISTE SÃO FORMAS DIFERENTES DE FALAR UMA MESMA LÍNGUA”

por Maura Voltarelli

A língua esteve no centro das discussões da mídia nos últimos dias com a aprovação de um livro didático pelo MEC que, segundo muitos jornalistas, conteria erros gramaticais e estaria prejudicando o ensino do português no Brasil. Não faltou quem dissesse que o país estava jogando definitivamente a toalha e entregando a educação das crianças e jovens à sua própria sorte. No meio de toda crítica, faltou um pouco de bom senso e o mínimo de conhecimento de questões relativas à linguagem, ao aprendizado linguístico e à natureza de uma língua, bem como do próprio livro didático tão criticado.

O Educação Política se manifestou sobre a questão em dois posts recentes defendendo que o ensino de uma língua não pode se pautar pela lógica do certo ou errado. As diferentes formas linguísticas são fatos e como fatos devem ser encaradas como tal. Escrevemos em favor de uma lógica da totalidade sem qualquer tipo de hierarquização ou privilégio de uma coisa em detrimento da outra, pois não se conhece uma moeda olhando apenas para um lado.

Por isso, as novas formas devem ser explicadas pela escola, não defendidas, como lembra o linguista Sírio Possenti que é professor do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de livros como Discurso, estilo e subjetividade, A cor da língua e outras croniquinhas de linguística, Os humores da língua, Mal comportadas línguas e Por que (não) ensinar gramática na escola.

Sírio concedeu uma entrevista ao Educação Política em que expõe, dentre outras coisas, que a noção de erro a partir da qual se orientou toda cobertura midiática não faz sentido. Segundo ele, o que existe são formas diferentes de falar a mesma língua que, quando descritas com procedimentos adequados, ajudam a descobrir a gramática, as regras e as regularidades dessa língua. Além disso, ele ressalta que a noção de erro é social, a própria sociedade, antes das gramáticas, é que diz se uma pessoa sabe ou não falar uma língua.

Agência EP: Em episódio recente, boa parte da mídia nacional criticou um livro didático aprovado pelo MEC que, segundo alguns jornalistas, era uma ameaça ao ensino do português no Brasil por conter o que eles chamaram de “erros gramaticais”. Como linguista, como você vê a atitude da imprensa nacional? O livro de fato ensina o brasileiro a falar errado ou, na verdade, é a própria gramática tradicional – do certo e do errado – que repete a todo o momento que o brasileiro não sabe falar português?

Sírio Possenti: Há dois aspectos a serem destacados: a) de um ponto de vista científico (observacional, descritivo), a noção de erro não faz sentido. O que existe são formas diferentes de falar uma mesma língua. Todas elas podem ser explicadas (o que é diferente de dizer que são defendidas…). Para descrever tais variedades, existem procedimentos de coleta de dados e de aplicação de outros procedimentos metodológicos que podem ser aprendidos. Esta descrição de cada variadade descobre sua gramática, suas regras, suas regularidades. b) a noção de erro é social, decorre de uma avaliação de formas da língua feitas por critérios soiciais (em geral, consideram-se erradas as formas de falar dos grupos de menor prestígio – os do campo, da periferia das cidades etc.). Há uma forte associação entre escrita e os modos de falar ditos corretos. Assim, não é bem a gramática que diz que se fala errado; é a própria sociedade, mesmo que ela não conheça a gramática.

AEP: O caso do livro do MEC fez ressurgir uma polêmica que vez ou outra aparece quando se trata do aprendizado de uma língua: a relação entre escrita e oralidade. Em seu livro Por que (não) ensinar gramática na escola, você diz que “a escola deve privilegiar a escrita, mas que características da oralidade são cruciais para compreender o processo geral”. Exatamente como a oralidade se faz importante para o aprendizado de uma língua e por que ela geralmente tende a ser vista quase como um “patinho feio”, como algo menos importante, uma forma errada ou própria para apenas algumas ocasiões?

Sírio: Valorizar a oralidade é valorizar o conhecimento linguístico que os alunos têm quando começam sua vida escolar. Não se ensina ninguém a falar na escola. E as aulas são ministradas em português, o que deixa claro que a própria escola sabe que os alunos sabem a língua. O que eles não sabem é escrever. E é o conjunto de “habilidades” que se exigem para escrever (e ler, claro) que devem ser desenvolvidas aos poucos na escola. Paralelamente, faz-se uma avaliação das formas mais e das formas menos aceitáveis pela sociedade, a depender dos contextos sociais em que se fala, ou das esferas ou campos em que se escreve. Não se trata de oralidade pela oralidade, portanto, mas do conhecimento “implícito” da língua.

Misteriosa é a língua

AEP: Quais são os principais problemas que você vê hoje no ensino de gramática nas escolas? Por que os professores têm uma dificuldade tão grande em se desprender dos manuais e reger o ensino mais sob uma lógica da totalidade do que simplesmente do certo ou errado? A escola deveria apenas ser o lugar da análise sintática ou ela pode ser algo mais?

Sírio: Há diversos problemas. Alguns: a) não se ensina gramática para analisar fatos (como se faz em outras disciplinas), mas para ensinar normas; b) a metodologia não é boa: as definições e os critérios de análise não são claros; c) repetem-se as mesmas lições (eventualmente erradas) todos os anos… Eventualmente,pode ser também que os que ensinam não sabem bem o que ensinam. Ourtro problema: confunde-se saber gramática com saber a língua…

AEP: No campo da arte, trabalhos muito interessantes já foram feitos com a linguagem. O escritor Guimarães Rosa, por exemplo, manifestava o desejo de que as línguas fossem se corrompendo umas às outras, por isso, ele alterava o significante das palavras, valendo-se do seu conhecimento em várias línguas como grego, latim e até sânscrito. Além disso, em romances como Grande Sertão: Veredas, o poder da fala vira quase uma forma de existência, de conhecimento e reconhecimento, pois é apenas quando Riobaldo vai dizendo suas memórias que ele entende de fato a sua experiência. Em sua opinião, a linguagem tem mesmo todo esse poder diante da existência humana? Ela é capaz de organizar nossa experiência, assim como organizou a de Riobaldo?

Sírio: Não sei se eu leria Grande Sertão assim… Mas você menciona um fato importante: a língua da literatura não só não coincide com a língua falada, como também não coincide com a língua de outros campos, como o científico ou o jurídico. Outro fato importante: a língua (língua materna) é provavelmente o principal ingrediente da identidade das pessoas. Mas não sei dizer se elas se “conhecem” fazendo narrativas (de si).

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